Porto, 30 de julho de 2023
Olá! Espero que esta última semana de julho tenha te trazido bons momentos e algum descanso. Agora começa o ano de “Agosto, o interminável”, não é mesmo?
Olha, essa carta está sendo escrita na noite de sábado e, até uma hora atrás, eu não tinha fechado o assunto que eu gostaria de conversar contigo. Muito embora eu tenha passado a semana rascunhando temas, frases e questões na minha cabeça, eu não tinha até agorinha nada acertado.
Mas tudo mudou numa breve zapeada pelo Twitter (é, eu sei). Lá alguém compartilhou a imagem que ilustra esta carta e que eu vou colocar de novo abaixo deste parágrafo. É uma imagem projetada da topografia do Brasil, colorido, com as várias alturas e baixuras ao longo de todo o território. Na imagem, não há água, florestas ou cidades. Só as profundidades e as alturas do nosso gigante deitado eternamente em berço esplêndido.
[Fonte]
Eu já devo ter visto essas imagens mil vezes, mas hoje essa me chamou a atenção e me deu uma ideia (que os modernos chamam de insight) de uma forma muito clara:
A topografia é o estudo dos princípios e métodos necessários para a descrição e representação das superfícies terrestres (e de outros corpos astronômicos), em especial para a sua cartografia.
Então, e se a gente começasse uma conversa sobre a topografia, não do Brasil, não da América do Sul, mas a topos (τόπος | lugar) grafo (γράφω | descrever), a “descrição de um lugar", chamado afeto?
E se a gente tentasse descrever e, pura ousadia, compreender os nossos afetos, nomeá-los além dos guarda-chuvas do amor e ódio? E se a gente descrevesse o bem querer, a amizade, a raiva, o rancor, a saudade, a libido e a inveja, entre outros que me escapam agora?
Esta carta, até agora com duzentas e cinquenta palavras, não tem objetivo algum além de te chamar pruma conversa. Não sou antropólogo, psicanalista, médico ou nenhum cientista da área das emoções e do comportamento. Sou apenas um jornalista, mais especificamente um escritor e poeta; e uso das palavras para construir para mim mesmo um mundo que me faça sentido.
Um breve e necessário parêntese
Compartilhei no sábado dois trechos de entrevistas que eu gostaria que você visse. Um do Tarantino falando sobre filmes. Diz ele: “Que filme nós nunca vimos por que você não o realizou? E realizar esse filme é a razão pela qual você faz o que faz”. Na outra entrevista, Neil Gaiman faz a seguinte reflexão:
“Ninguém consegue ser você, exceto você. Ninguém tem o seu ponto de vista, exceto você. Ninguém pode trazer para os mundos as coisas que você pode trazer para o mundo – exclusivamente para trazer para o mundo – exceto você.
Então, dizer que existem escritores suficientes, diretores suficientes, pessoas suficientes com um ponto de vista – bem, sim, existem – mas nenhum deles é você, nenhum deles vai fazer a arte que você está aqui para fazer, nenhum deles vai mudar as pessoas e mudar o mundo da maneira que você poderia mudar.
Então, se você acredita em alguém que diz: 'Não, não, já temos o suficiente', isso significa que você está desistindo de sua chance de mudar o mundo da maneira que só você pode mudar.”
Há uns bons meses, numa conversa com um amigo querido, eu disse pela primeira vez:
“Estou cansado de me esconder atrás do ‘profissional da escrita, do editor com duas décadas de carreira e centenas de livros feitos para pequenas editoras e autores independentes’. Estou cansado de não ter coragem de dizer que sou ‘escritor e poeta, sim, senhora’. Minha garganta está há muito tempo cansada de não poder dizer ‘Eu sou um artista e escrever é minha arte’.”
Por quê? Porque alguns parentes, alguns professores, algumas pessoas próximas riram de mim durante toda a vida e o diabo é que a vergonha é a maior inibidora de talentos e a maior assassina de sonhos que eu já conheci (e a Brené Brown concorda comigo).
Na primeira das Cartas Atlânticas, eu te falei que, em 2019, eu decidi que iria para o tudo ou nada no tratamento da depressão que me destruía já há anos. E uma das mais importantes decisões que tomei foi a de deixar de lado o ceticismo mimizento de ativista de redes sociais e aceitar que um resgate da espiritualidade faria parte do tratamento.
Pois bem, aqui fecho o parêntese: nessa busca por um resgate da minha espiritualidade, conversei e busquei conselho de várias pessoas, independente do credo confessado e da religião praticada.
E, sem me conhecerem, todos me disseram a mesma coisa, cada um com suas palavras: “Você tem um dom com a palavra escrita e precisa trabalhar com esse talento porque tem gente que precisa ler o que tem dentro de você para ser escrito”.
Ah, confesso que fiquei envaidecido num primeiro momento. E me deu um senhor cagaço quando entendi que era sério. Em seguida, as mesmas pessoas me deram o mesmo conselho, também cada um com seu jeito de falar: “É hora de você parar de fazer pros outros e começar a fazer para si”.
É um bom conselho “cuidar de si primeiro antes de cuidar dos outros”, mas meus conselheiros quiseram tornar o recado mais claro: “É pra você parar de trabalhar nos textos dos outros e começar a trabalhar nos seus escritos”.
Isso foi em 2019 e digamos que não sou muito bom em seguir conselhos práticos, ainda mais os que me pedem coragem e desprendimento. Agora mesmo, há poucas semanas, acabei de editar mais um livro, dessa vez uma biografia ficcional para uma terapeuta brasileira que mora em Portugal.
Eu te confesso que essa obra foi uma das que mais mexeu comigo porque precisei dar à obra uma atenção que me doeu muito. Eu me senti incomodado o tempo todo em que trabalhei com a obra dessa autora com a sensação quente e incômoda de que eu não tenho mais como fugir do que é minha sina, minha arte e minha motivação para escrever. Desde então, tomei coragem e surgiram várias ideias, como as novas postagens nas redes, a finalização do primeiro livro autoral e estas Cartas Atlânticas.
De volta à topografia dos afetos
Agora que te expliquei o que a escrita significa para mim e o que farei dela daqui em diante, vamos voltar à ideia que tive sobre a topografia dos afetos. A gente fala muito fácil em amor e ódio, concorda? Mas a gente morre de medo de expressá-los ou mesmo de descrevê-los em suas nuanças, profundidades e alturas.
Mesmo quem diz que não tem dificuldades em dizer “Eu te amo” deixa subentendido que diz a frase tranquilamente pra mãe, pro filho ou, se muito, no afã do momento pela pessoa por quem está apaixonada.
Que cara tem coragem de ser honesto e dizer pros amigos que os ama e que eles são importantes em sua vida? Um bom amigo meu atribui à embriaguez esses, segundo ele, “momentos de fraqueza no personagem”. Que pessoa sustenta a sua expressão de amizade quando descobre que não tem uma admiração de volta? E, talvez uma provocação ainda maior, quem admite que ama a pessoa que tem ao seu lado hoje e, mesmo assim, sente saudades ou carinho pelas pessoas que estiveram ao seu lado antes? Que tem uma saudade de estimação que aprendeu com uma pessoa por quem nutriu um grande sentimento, mas não durou para sempre?
Reveja o mapa topográfico que coloquei nesta carta. Negar nossos afetos, obnubilá-los (palavrinha bonita que significa “esquecer de propósito” e que só aprendi porque me apaixonei pela professora de Linguística Aplicada no segundo ano da Letras) seria como definir que só o Planalto Central representa o Brasil. ou que as profundidades que dão leito para que o Pantanal e a Amazônia existam como terras ricas de vida, mesmo submersas a maior parte do tempo, não podem ser fiéis expressões de parte dessa miscelânea que constitui o Brasil.
Agora reveja o mapa topográfico dos seus próprios afetos. Ache dentro deles os lugares altos dos quais você se orgulha, dos mirantes fabulosos da sua afetividade, dos seus amores, empatias e amizades. E continue, ache seus rincões, seus acidentes, os lugares submersos de afetos escondidos, afetos que você, nem às paredes, confessa.
Esse é um exercício que tenho praticado muito nos meus textos e poemas mais recentes, dar nome aos afetos e, ainda mais, dar-lhes corretos destinos e destinatários. E este é um assunto que não se esgota e ao qual voltarei mais vezes no futuro em minhas cartas.
Termino esta carta, antes que complete mil e quinhentas palavras, te pedindo uma coisa: Se você leu até aqui, deixa um comentário pra eu saber a quantas anda o nosso diálogo. Pode ser? E que você fique bem neste começo de agosto.
P.S.: Eu sei que esses mapas também são chamados de geológicos etc. Mas tenha um pouco de paciência que ainda estamos estabelecendo a metáfora, talkei?
Nossa tem afeto demais submerso.
Muitas vezes por achar que será uma vergonha para o receptor, posto que tal adjetivo quase nunca está nas descrições sobre a minha pessoa. 😂
Esse escritor por exemplo, não paga aluguel nesse negro coração a muitos anos.
Parabéns novamente.
A cada dia, a cada texto, você cresce incrivelmente e eu me orgulho mais e mais.
Compreender e nomear os afetos são exercícios que, muitas vezes, não estamos dispostos a fazer. Leva tempo e pode trazer desconforto. Penso que é como o processo de diagnóstico de uma doença, a partir do momento que a conclusão é feita, fica mais fácil definir a conduta adequada.